O assunto não é fácil.
É
polêmico.
E poderia não ser?
Trata de questões humanas, envolve interpretações, crenças, opiniões.
Não é
uma ciência exata e por isto, requer envolvimento e reflexão.
Preparado?
Numa aula sobre Direitos Humanos, o acadêmico
Edgar Dornelles levantou uma questão que faz parte da realidade do Brasil e de outras sociedades.
Ele citou um caso de uma pessoa pobre que, flagrada furtando, foi presa e condenada.
Sofreu a ação da pena imposta pelo Estado e na cadeia, segundo ele, foi
violado em seus
direitos fundamentais.
O que o Edgar perguntava é por que a
justiça parece mais rápida, dura, inflexível para alguns, especialmente os economicamente vulneráveis, e para outros ela é atenuada por recursos e outras formas de amenizar as penas dos culpados.
Se todos são
iguais para a lei, por que as consequências de suas aplicações são
diferentes?
Pelo princípio da
isonomia, não deve haver diferenças entre as pessoas perante a lei.
Porém, esta igualdade é fundamentada por uma ideia que desce da
abstração para o mundo
concreto e é aí que há
distorções.
Os direitos humanos, consagrados no século XX após a II Guerra, têm razões filosóficas que vêm de longe.
Vamos remontar rapidamente um percurso que pode esclarecer melhor algumas origens que inda hoje estão presentes na maneira de nós pensarmos.
Lá na Grécia

Na
antiguidade, o paradigma dominante tinha na
metafísica aristotélica sua grande razão. O pensador de Estagira consolidou a visão vigente de que no universo cada coisa tem sua função e motivo de existir. Tudo está no seu
lugar natural e exercer sua finalidade atribuída pelo cosmos é realizar suas virtudes e contribuir para a harmonia total.
A chuva tem que cair, a pedra tem que estar no chão, os deuses governam o universo e cada homem tem seu espaço na sociedade: o escravo é para servir, o homem capaz é para conduzir a pólis, etc. O importante é cada um entender qual sua posição e realizá-la do melhor modo.
Neste sentido, não há igualdade entre os humanos.
Há sim desigualdade e aos melhores são dadas as melhores condições e recompensas, enquanto que aos piores, será dado o correspondente.
Mas, e a razão? Todos a possuem!
Podemos chamar a razão de comum aos humanos, não de igual.
No mundo de Aristóteles, os estúpidos ou fracassados eram excluídos.
Este tipo de
pensamento é
familiar para você?
A vida
feliz é a
moral. A vida moral (prática, que se modifica no tempo) é fazer o que é certo. Fazer o que é certo é positivar, fazer bem feito, os talentos naturais dados pelo universo.
"Com efeito, o que, por natureza, é próprio a cada um, é também para cada um, a melhor e mais doce coisa. Logo, para o homem (é tal) e vida conforme o intelecto, pois este é, sobretudo, o que constitui o homem. Por isso, esta é a vida mais feliz." (Ética a Nicômaco, X, 7, 1 177-8. MONDOLFO, p. 58, 1973)
Conhecer a si mesmo é um imperativo neste contexto para o reconhecimento e a realização das
virtudes.
"A razão cognoscitiva é para nós o fim segundo a natureza, e o conhecer é o fim último para o que nascemos." (Protréptico, fr. 10 c, Walzer = 61 Rose. MONDOLFO, p. 10, 1973)
E Sócrates?
Teria morrido por desafiar a
harmonia cósmica
instituída?
Ele pregou o livre exercício do pensar para desvelar o real e compreender o bem e a virtude. No Mênon, que trata da virtude e se ela pode ser ensinada, é o escravo quem resolve os problemas de geometria ao supostamente recordar
experiências transcendentes. A virtude tem origem divina e cabe ao homem buscá-la por meio do bem que pratica.
"[...] a virtude nem é dádiva que se receba por obra da natureza, nem coisa que possa ser ensinada, mas que é por graça divina e não pela intervenção da inteligência que a recebem os que a possuem." (PLATÃO, p. 74)
Ou seja, o filósofo afirma que está na
alma, melhor do que o corpo e pertencente a um mundo superior, inteligível, que pode acessar, a possibilidade de se elevar a uma condição de sabedoria e felicidade.
Mas em qual tipo alma?
Naquela que
filosofa.
Parece o que diz Aristóteles, sem dúvida. O convite do mestre de Platão será o de cada um pensar por si mesmo e fazer o bem acima de qualquer interesse. Nem tudo o que se diz ser justo é justo. Nem toda a verdade é verdadeira de fato. A tradição é a conservação de um estado e ele não é bom em si mesmo.
A
razão precisa ser
livre para ir ao encontro da
verdade. No entanto, não pode haver liberdade quando há determinismo. Ao homem a razão dá a capacidade para decidir o que fazer. Se age conforme o universo, é feliz. Do contrário, é infeliz por não se realizar como indivíduo.
E mais, como não age em favor do cosmos seguindo seu destino, atrapalha a organização do universo. É indigno de viver e a
infelicidade já é sinal de que está em
erro moral e não merece compaixão. É um estorvo e um
perigo para a sociedade. Precisa ser
eliminado para o bem dos demais.
Você
reconhece isto?
Neste contexto, o virtuoso vale mais do que o seu oposto e não há nada neles que os possa igualar.
Sócrates colocava a razão, e por isto o homem, acima dos valores da cultura de Atenas, mais confiante na tradição, nos deuses e nos seus governantes. Com isto, promoveu uma série de denúncias de práticas amparadas em sofismas, em lógicas pouco consistentes.
O escravo vale o mesmo que o cidadão nobre? A razão pode decidir isto? Os deuses podem acatar? Os costumes são menores do que a filosofia, que aponta um bem maior?
Sócrates morreu por desafiar o paradigma. Cristo sugeriu caminho parecido, dissidente, de amor incondicional a Deus e ao homem e teve destino semelhante, só que mais cruel.
A noção aristotélica permaneceu. Na Idade Média, atender ao chamado do universo ou de Deus significava seguir a vocação. Aos seres humanos cabia serem quem são na configuração cósmica. Santo Agostinho diz que o mal é resultado da escolha livre do homem, porém, o governo da realidade é de Deus e feliz é aquele que conforma-se a isto.
Homem moderno
Mas o ser racional segue presente e em vias de destacar-se como sujeito independente e digno por si mesmo. Com Descartes, ele ganha realidade lógica e metafísica. A Reforma reivindica a exegese. O Iluminismo prega a liberdade de pensar e a partir disto, modificar a ética e a política.

Com
Kant, a metafísica ocidental é revolucionada.
O pensador alemão ainda entende o
homem como um ser em
dois níveis. No concreto, é um ser
natural e condicionado pelas leis da natureza. Mas, como ser pensante, o homem é
transcendental. É livre das leis do nível empírico e pertence à categoria do
ser em si, inacessível. Kant consagra a ideia de que o ser racional é incondicionado e, por isto, não está determinado por forças do mundo físico a ser de um modo ou outro. Sobre o transcendental, nada pode ser conhecido por não haver dele experiência.
É como ser
transcendental que o homem possui vontade e quando a conduz bem (o
imperativo categórico é a ação de boa vontade com caráter
ético universal), pode transformar sua condição no mundo.
Este pensamento é conhecido de todos nós porque compõe o paradigma
moderno sobre o que é ser humano.
Para Aristóteles, a razão é um atributo natural com função clara.
Para Kant, um atributo transcendental.
O homem, neste sentido, é o ser entre os seres do mundo que vive nos dois níveis: um material, possível de ser experimentado e o imaterial ou ideal sobre o qual só se pode especular. É o ser que possui uma distinção
superior aos demais.
Todo homem (transcendental) é livre (a liberdade é igualmente transcendental) para decidir sua vida e nisto, todos são iguais. Mas, quando sai do abstrato para o concreto, as circunstâncias da vida levam a destinos desiguais. Contudo, isto
não é determinação ou dádiva divina.
É escolha e pode ser alterada. Nem sempre se consegue, dadas as resistências do meio (mundo concreto), mas o princípio segue inalterado, sustentando as chances e suas estatísticas abertas.
O
arbítrio é livre.
E esta liberdade humana, percebida e fundamentada nos
princípios objetivos do funcionamento da razão é sua dignidade essencial.
O ser humano já não é um ser entre os demais da natureza e por ela totalmente condicionado.
Nem mesmo Deus (ultrapassa a Escolástica e o aristotelismo especulativos) pode ser afirmado como condicionante da vida humana, pois Deus é produto da razão, uma especulação, transcendental e sobre o qual nada se pode saber por não haver experiência.
Aliás, a liberdade do homem o identifica com Deus, elevando-o.
O homem é um ser à parte, do grupo chamado
humanidade, com
valores próprios.
"[...] ele mesmo é, indubitavelmente, fenômeno, mas, por outro lado, do ponto de vista de certas faculdades, é também um objeto meramente inteligível, porque a sua ação não pode de maneira nenhuma atribuir-se à receptividade da sensibilidade. Denominamos a estas faculdades entendimento e razão." (KANT, p. 425)
Os direitos humanos, produto de uma ideia, apontam para a crença de que o homem é o fenômeno de um ser ideal real, espiritual, de valor supremo e que deve ser preservado com todos os esforços possíveis.
Voltemos aos
direitos humanos e sua difícil aplicação.
Eles garantem os direitos fundamentais humanos reconhecidos como básicos e universais para que qualquer pessoa tenha mantida sua dignidade e integridade de ser humano: sua humanidade objetiva de ser racional e emocional que o distingue dos demais animais e das coisas inanimadas. As
penas civis, por isto, não deveriam exceder o limite que
destrói a dignidade humana.
"A moral política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre os sentimentos indeléveis do coração do homem. Toda lei que não for estabelecida sobre esta base encontrará sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder." (BECCARIA, p. 9)
Mas, na prática, aceita-se uma
proporcionalidade entre
crime e
castigo que fere o direito humano.
Então, se deveríamos ser tratados como
iguais, por que não somos?
Certamente não é porque
alguns são humanos e outros não!
A humanidade de uma pessoa é
inalienável.

Retirar de alguém esta condição é
retroceder às ideias do mundo antigo.
Não acontece ainda?
Não é o ato bárbaro, desumano?
Ele está presente em
sociedades desiguais, patologicamente violentas, onde a civilidade é precária.
Sobre o
caso levantado pelo
Edgar, as violações são rotineiras devido ao grau de desajuste do sistema e da sociedade. Quando há ofensas aos direitos humanos, ocorre que nem todos movem ou conseguem mover a justiça para garantir o que é seu. É um instrumento do Direito acioná-lo, cada um que assim o deseja. Mas as pessoas desconhecem isto ou não alcançam e acabam sofrendo.

Quem pode ter um bom advogado ou conhece a lei, tem leis a seu favor, mesmo em caso de crime confirmado. A pena expressa não poderia transcender a si mesma e os castigos da prisão impostos por falta de estrutura, violências, entre outras arbitrariedades que atingem inocentes, suspeitos e condenados revelam a desumanidade de toda a estrutura. Mostram o Estado sendo negligente. Por isto
denuncia-se tanto os
desrespeitos aos direitos humanos.
Eles não servem para defender bandidos, como o senso comum declara pelas esquinas.
Contudo, numa
sociedade desquilibrada, ele também se desquilibra.
E a
justiça fica
contaminada pelo ressentimento, pelo medo, pelo ódio, pela indiferença, pela discriminação.
Tremendos males do coração induzindo às falhas da razão.
O que você acha, os Direitos Humanos devem ser aplicados em qualquer situação?
Os Direitos Humanos favorecem criminosos? Por quê?
O que poderia ser feito para melhorar a aplicação dos Direitos Humanos em nossa sociedade?
O Brasil respeita os Direitos Humanos?
Se você fosse preso, gostaria de ser respeitado como pessoa humana ou tanto faz?
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Ridendo Castigat Mores. Disponível em <
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> Acesso em: 22 fev. 2014
MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. São Paulo: Mestre Jou, 1973.
PLATÃO. Mênon. Ediouro, 19__
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Martin Claret, 2003.
imagens: duhaime, biografiasyvidas, educa.madrid, onu, politicaspublicasbahia